sábado, 27 de dezembro de 2014

O lugar que ninguém mais pisou

Sabe, meu pai sempre faz uma piadinha infame, dizendo que as coisas “só acabam quando terminam”. É uma redundância inteligente, apesar do trocadilho besta. A Língua Portuguesa é rica exatamente por permitir que duas palavras expressem diferentes nuances de coisas semelhantes. Por isso, sempre acredito que, se há duas palavras, existe diferença entre o significado delas. Interminável é o que não de pode terminar e infinito é o que é eterno, que dura para sempre, por exemplo. E às vezes acaba, mas não tem término. 

Já faz tempo, mais de três anos, quase quatro!!! Tô ficando velha; entrei para a casa dos 30 mas parece que foi ontem. Ou parece que foi ontem hoje. Anteontem parecia que fazia um tempão que tinha ficado para trás. Mas ontem não pareceu, quando vi o coral dos Minions. Também não pareceu quando assisti “Seabiscuit” e “Cavalo de Guerra”. Mas fazia anos que parecia que foi há muito tempo. Não sei por que mudou. Ou imagino, depois que me dispus a fazer uma série de comparações e revirar meus padrões de comportamento e as histórias cujas lacunas ainda me faziam pensar vez ou outra. E na sua história tinha um rombo. Do mesmo tamanho do rombo que ficou na minha alma, na época. 

Não que a gente vá ter todas as explicações na vida, ela é assim mesmo. Te desafia sobre o quanto você pode ir adiante, sobre o que você é capaz de fazer com aquilo que ganhou. Minha grande virtude é que eu nunca paro, eu nunca travo. Eu me despedaço, mas sempre sigo com o que sobrou e vou juntando os caquinhos, de uma maneira ou de outra. Chorei como nunca, me desmanchei como nunca, tive noites de muita insônia enquanto eu assistia e tinha certeza da sua felicidade. É aquele momento em que você não pode fazer absolutamente nada. O caminho é simples, mas ele simplesmente não existe também. É como viajar de carro em meio à neblina. A estrada está ali, vai se desvelando metro após metro, mas é impossível saber que ela realmente está. 

E você parecia tão certo. Eu nunca nunca tive dúvidas em relação a você, ao contrário de todos os outros. Por mais apaixonada que pudesse estar, eu sabia que não era aquilo. No seu caso, era uma segurança incontestável, que eu nunca experimentara antes. Como a Summer descreveu no fim de “500 days of Summer”. Eu tinha certeza, mesmo que a vida viesse a me provar que eu estava errada. Admirava o jeito equilibrado de ser e era capaz de encontrar uma série de afinidades, desde o modo de pensar e até a rotina - hoje tenho a convicção de que você não tinha a mesma visão; óbvia e indubitavelmente você encontrou alguém com mais afinidades. Eu sei. 

Dediquei-me então a procurar seus defeitos, a encontrar qualquer um que valesse a pena me apegar. E, Meu Deus, como você era egoísta! Foi-se embora sem um tchau, sem carta de despedida, sem cena de novela. Sem música do Chico. Porque provavelmente eu não te importava tanto assim, isso foi fácil de concluir. 

Felizmente, dentro de uns poucos meses, me apareceram dois anjos consecutivos. Um moreno que me fazia rir e que fazia companhia diariamente, preenchendo exatamente o espaço que você tinha deixado. Depois, um par de estonteantes olhos azuis, que chegou com um novo emprego e uma nova fase: Mickey Blue Eyes. 

Mas a grande questão nisso tudo - e, antes que você pergunte, o motivo dessas linhas todas - é que, por meio de você, eu aprendi muito. Sobre mim mesma. E a gente certamente aprende mais quando erra, se houver autoquestionamento. Carreguei muitos arrependimentos e a angústia de saber que não, nunca iria poder tentar tudo de novo. Afinal, por que eu tinha de ter tanto medo, por que eu não pude ser mais sincera, por que eu tinha de ter tanta cautela, por que eu não podia ter me jogado de fato, se era o que eu verdadeiramente queria? Tantos bloqueios, tanto medo de errar… Será que você me viu por completo? Eu tinha permitido?

E ao tentar entender, assumir uma culpa talvez indevida, eu cresci. Eu amadureci. Soltei algumas amarras, passei a entender e a aceitar o que fugia a meu controle e a me entender também. E a compreender que eu não precisava ter controle e que nunca ia ter. E que perdê-lo nem sempre é ruim. Aprendi a me expressar, a ser sincera comigo mesmo. Porque, afinal, fazer tipo nunca vai te salvar se você tiver de cair no abismo. Ao menos, é melhor cair sabendo que você fez tudo o que podia ter feito ou o que sentia, ou que tinha vontade, ou o que fazia sentido. Exatamente o que eu não fiz, o que não soube fazer, do que tive medo. Hoje é diferente. 

Porque não há melhor sensação do que aquela de ver as possibilidades esgotadas com uma sensação de missão cumprida, de completude, de ciclo fechado. E não há pior sentimento do que o remorso de não ter tentado. É adicionar uma variável sobre a qual você é soberano. Levar dúvidas eternas para o túmulo. E para os dias, os anos. 

Por todo esse processo, eu queria te agradecer. A gente sempre se pergunta o porquê, e, quando o faz, é por não ter resposta. Mas ela sempre vem. Demora, mas vem. Só é preciso enxergá-la. 

Eu não conseguia mais estar no mesmo lugar, almoçar no mesmo lugar, fazer as coisas no mesmo momento desde que você se desencaixou da minha rotina. Então, eu tive de mudar de emprego, de academia, de trajeto, de rotina. E eu mudei. Me mudei. Cresci, aprendi. Afinal, a vida é mudança. Imobilidade é morte. O importante é que as coisas, mesmo as piores, façam algum sentido.





quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

O ano da descontrução

Eu normalmente faço essa postagem antes das festas. E este final de ano será atípico; sem viagens, com um hiato entre o começo de um fim e o reinício ainda maior. Sem praia, sem religare, sem desconexão e reconexão. Estou lutando para não sentir apenas uma extensão de hoje e do ontem. Tenho sede de pausa no momento. Por menor que ela seja. Não porque o ano possa ter sido difícil e não porque tenha sido fácil também. Foi difícil no sentido de desafiador e fácil no sentido de ter me trazido inúmeras conquistas - aquelas que podem e aquelas que não se podem ver.

2014 foi uma ano de aprendizado e redescoberta. Não de descoberta. Porque o redescobrir é a proposição de um olhar diferente para o que já estava sendo observado. É um esforço de atualizar conceito, rever atitudes, criticar a si mesma, mesmo que para desmontar-se sem saber o que virá. E em todos os aspectos da minha vida eu fui bem sucedida nesse processo, neste custoso mas gratificante processo. Gratificante desde que se possa olhar os resultados, mesmo que não sejam objetivamente aqueles inicialmente almejados. É valorizar cada ponto marcado.

Este foi o ano de me permitir, de me expressar, de tentar uma tentativa, assim, redundantemente mesmo. Porque nem sempre a gente consegue perceber as próprias falhas e omissões da maneira mais simples e objetiva. E aguardamos infinitamente que as coisas simplesmente aconteçam. Foi o ano de me tornar definitiva e ativamente a protagonista da minha vida. Mesmo que ela não se pareça com comercial de margarina.

Foi o ano de ter coragem. Pra trocar de profissão, para questionar minhas próprias atitudes, para aprender a não ter medo do ridículo, a arriscar, a não carregar arrependimentos novamente. De pagar pra ver. De gostar e achar normal, de ter de esquecer e achar normal também. Estou deixando meus pequenos finais de mundo de lado. Aos 31 estou finalmente começando a dar as caras no mundo, da maneira como eu sempre achei que deveria e recomendaria, mas que nunca fizera. Me desconstruí.
Me revi. Fiquei mais leve.

E de fazer grandes reencontros comigo mesma. De entender que eu mudei. E que não preciso ter medo disso. E reencontrei-me com antigas paixões e com a velha Pamela. E descobri que ambas são capazes de despertar as mesmas emoções de dez ou três anos atrás. Incrível como você ainda causa repulsa; incrível como você ainda me faz sentir saltitante e familiar. Ainda quero as respostas de outro dia, mas temo que elas não me façam diferença agora - já que hoje eu faço diferença. Mas ainda assim as quero, para olhar pra frente. Ou te ter à frente. Mais uma vez, a primeira com a nova versão de mim mesma, muito parecida com cada novo iPhone - nada gritante, mas capaz de agregar muito valor.

Mesmo assim, seguem os tropeços, o aceitar a mim e às circunstância e fazer a melhor limonada suíça com leite condensado - quem sabe uma caipirinha! - e enriquecer com isso. E de também me preocupar mais comigo e menos com os outros. Parece fácil, não é? Até perceber que estava sendo contraditória consigo mesma.

Elegi duas palavras para 2015: ABERTURA e FLEXIBILIDADE. E não estranhem se deixar de lado sem pudor quem não retribui, amizades de espuma, amores cheios de dissabores e se disser que estou gostando muito da Bio Ritmo e que, por hora, não sinto falta de dançar. Aqui não cabe mais nenhum tipo de romantismo, embora ainda sobre muita emoção e sensibilidade.

Desejo-te um autêntico viver em 2015, aquele que pulsa na alma, mesmo que nunca tenha saído da garganta. Desejo que você deixe pular aquela pulguinha atrás da orelha. Ao menos, ela terá saído de lá. No more regrets. No more "ifs".


segunda-feira, 13 de outubro de 2014

O que encanta

Sinceridade é algo que todos evocam, mas que poucos praticam. Para ser sincero, é preciso tato, equilíbrio e ponderação para não ser grosseiro. Caso contrário, deixa de ser sinceridade para ser malcriação. Sinceridade também remete à intimidade e à sutileza. Sem alguma intimidade, não há por que ser sincero. E sem sutileza, vira intromissão.

Sinceridade é respeito, sinal, sobretudo de caráter. Mesmo que não seja indelicadeza, mostrar honestidade e consideração é sempre qualidade. E sinceridade difere muito de manipulação. Há quem dissimule a própria transparência em prol dos votos de credibilidade que não tem. E deixa de ser sincero, mesmo que aparente. Porque sinceridade está na essência que sempre se revela com o entrecruzar das histórias e com o gotejar dos dias.

Sinceridade não serve ao egoísta; é altruísta. Sinceridade é mais uma questão de ética do que de moral: aquilo que vale para o outro, vale para mim também, como lei universal. Sinceridade é muito mais uma questão de querer e fazer; não está, de fato, atrelada às circunstâncias. O sincero sempre encontra o caminho da sinceridade, desde que queira. E sinceridade é carinhosa, nunca agressiva.

O insincero esconde-se atrás das desculpas e da própria petulância; porque custa-lhe muito abrir-se, mesmo que custe mais ainda esquivar-se. O sincero não se esquiva, acolhe, aceita. O não sincero critica, julga. O sincera coloca, argumenta, explica. Mas a grande diferença está na mágoa ou no laço.


sábado, 20 de setembro de 2014

O momento zero

O momento zero é quase uma fatalidade, uma inevitabilidade da vida, mesmo que passemos nossa existência tentando evitá-lo. Antes, só o vácuo, o pó. É no momento zero que todas as expectativas se cruzam, que faz-se a criação e o conhecimento, em que se dá a luz. Depois, é o trilhar do caminho, fazer-se familiar, tomar conta e contato. E está criada a experiência, a história, a referência.

O momento -1 é a escuridão da pré-gênese. É o instante em que nada é. Tateia-se, infere-se, imagina-se. O -1 existe no campo das ideias, no solúvel. É o túnel sem fim, uma gestação eterna. Nada é, mas tudo pode ser. O caminho é longo.

E existe o início, o instante número 1. Às vezes, ofusca, às vezes é nublado. Pode terminar no 2 ou ser infinito. É o momento da primeira tentativa, do primeiro dia, do primeiro beijo, da primeira viagem. É o campo da experimentação, da sapiência, da concepção.

Me perdoe se não aceitei seu convite, se não te dei bola, se não dei a você e a mim a oportunidade de conhecê-lo. Foi a minha inabilidade de lidar com o momento zero que me impediu. O medo de não saber onde colocar as mãos, de não saber o que dizer e de ter de transpor esse - ugh! - difícil momento do iniciar. E o medo de não gostar ou de gostar de você. E você de mim. E de não saber o que fazer com isso tudo.

E destruo meu próprio temor, encaro que a vida só se faz a quem se dispor ao momento zero. A expandir o que é infinito, sair da zona do conhecido para encarar o novo. A desordem da evolução e da revolução. Desbravar o primeiro passo para que se faça dele uma trilha conhecida. E qualquer paralisia é morte num universo de eterno conhecer.

quinta-feira, 11 de setembro de 2014

Clarividência

Olhou para o relógio, que marcava 5:50. Manteve-se imóvel por alguns minutos, contemplando o fio de claridade que começava a escapar entre as frestas da janela. A posição era confortável. Manteve o corpo pesadamente largado, sobre os próprios pensamentos. Era muito cedo ainda. Tinha muito tempo para permanecer, embora o corpo já desse sinais de que a energia estava revigorada e pronta para percorrer as veias.

Virou-se. Ouviu o primeiro piar do dia e fechou os olhos novamente. Ainda era madrugada. Ainda custava para que a manhã chegasse - mas que bonita deve ser a aurora, pensou. Mesmo assim, preferiu buscar mais uma vez o sono. Agora já deve ser hora. Desvirou-se. 6:08. Ignorou. Ignorava a si mesmo, a vontade contrária do corpo de sair saltitante. Não, não se reprimia. Tinha certeza. Não era um impulso, mas uma opção. Ao menos naquele momento.

Na escuridão dos próprios olhos fechados, a mente falava. Conversava, esbravejava. Tentava convencê-la a calar-se. Cobriu a cabeça e rendeu-se a um espreguiçar, para entregar-se de novo à imobilidade, certo de que a sensação de relaxamento depois de esticar-se o conduziria a um delicioso sonho. Sentiu um leve torpor e teria adormecido, não fosse agora o forte raio de luz que refletia em um objeto cromado.

Só queria adormecer mais uma vez. Mais um pouco; mais um momento. Será que fazia frio? Decidi que não importava; tinha seus cobertores. Perguntou-se se já havia movimento na rua, mas recusou-se a abrir as cortinas. Já era quase 8 horas, veja só! Esperara tanto! Mas ainda não era o suficiente e deitou-se de bruços.

As pernas já estavam impacientes e o Sol já raiava, mesmo que o dia estivesse reticente. A cidade começava a fazer barulho e tudo já despertava. Questionou o valor das horas, confundiu-se por instante. E cansou. 10:04.


Não, ele ainda não acordou.


                 Claridade - Ana Carolina

segunda-feira, 18 de agosto de 2014

Sem notebook e sem pipoca

Há várias postagens no forno infernal da minha cabeça - porque eles aquecem até explodir e virar pipoca. Mas uma pessoa sem notebook não consegue digitar em tablet nem em smartphone. Muito menos olhando para a TV com o pescoço em um ângulo maior que 180 graus (sim, foi o monitor que queimou, aparentemente).

Enquanto isso, fiquem com esse texto maravilhoso, do recém-falecido Rubem Alves, publicado no "Correio Popular", de Campinas. Acho que ando meio assim, pipoca.


A pipoca


A culinária me fascina. De vez em quando eu até me até atrevo a cozinhar. Mas o fato é que sou mais competente com as palavras do que com as panelas.

Por isso tenho mais escrito sobre comidas que cozinhado. Dedico-me a algo que poderia ter o nome de "culinária literária". Já escrevi sobre as mais variadas entidades do mundo da cozinha: cebolas, ora-pro-nobis, picadinho de carne com tomate feijão e arroz, bacalhoada, suflês, sopas, churrascos.

Cheguei mesmo a dedicar metade de um livro poético-filosófico a uma meditação sobre o filme A Festa de Babette que é uma celebração da comida como ritual de feitiçaria. Sabedor das minhas limitações e competências, nunca escrevi como chef. Escrevi como filósofo, poeta, psicanalista e teólogo — porque a culinária estimula todas essas funções do pensamento.

As comidas, para mim, são entidades oníricas.

Provocam a minha capacidade de sonhar. Nunca imaginei, entretanto, que chegaria um dia em que a pipoca iria me fazer sonhar. Pois foi precisamente isso que aconteceu.

A pipoca, milho mirrado, grãos redondos e duros, me pareceu uma simples molecagem, brincadeira deliciosa, sem dimensões metafísicas ou psicanalíticas. Entretanto, dias atrás, conversando com uma paciente, ela mencionou a pipoca. E algo inesperado na minha mente aconteceu. Minhas idéias começaram a estourar como pipoca. Percebi, então, a relação metafórica entre a pipoca e o ato de pensar. Um bom pensamento nasce como uma pipoca que estoura, de forma inesperada e imprevisível.

A pipoca se revelou a mim, então, como um extraordinário objeto poético. Poético porque, ao pensar nelas, as pipocas, meu pensamento se pôs a dar estouros e pulos como aqueles das pipocas dentro de uma panela. Lembrei-me do sentido religioso da pipoca. A pipoca tem sentido religioso? Pois tem.

Para os cristãos, religiosos são o pão e o vinho, que simbolizam o corpo e o sangue de Cristo, a mistura de vida e alegria (porque vida, só vida, sem alegria, não é vida...). Pão e vinho devem ser bebidos juntos. Vida e alegria devem existir juntas.

Lembrei-me, então, de lição que aprendi com a Mãe Stella, sábia poderosa do Candomblé baiano: que a pipoca é a comida sagrada do Candomblé...

A pipoca é um milho mirrado, subdesenvolvido.

Fosse eu agricultor ignorante, e se no meio dos meus milhos graúdos aparecessem aquelas espigas nanicas, eu ficaria bravo e trataria de me livrar delas. Pois o fato é que, sob o ponto de vista de tamanho, os milhos da pipoca não podem competir com os milhos normais. Não sei como isso aconteceu, mas o fato é que houve alguém que teve a idéia de debulhar as espigas e colocá-las numa panela sobre o fogo, esperando que assim os grãos amolecessem e pudessem ser comidos.

Havendo fracassado a experiência com água, tentou a gordura. O que aconteceu, ninguém jamais poderia ter imaginado.

Repentinamente os grãos começaram a estourar, saltavam da panela com uma enorme barulheira. Mas o extraordinário era o que acontecia com eles: os grãos duros quebra-dentes se transformavam em flores brancas e macias que até as crianças podiam comer. O estouro das pipocas se transformou, então, de uma simples operação culinária, em uma festa, brincadeira, molecagem, para os risos de todos, especialmente as crianças. É muito divertido ver o estouro das pipocas!

E o que é que isso tem a ver com o Candomblé? É que a transformação do milho duro em pipoca macia é símbolo da grande transformação porque devem passar os homens para que eles venham a ser o que devem ser. O milho da pipoca não é o que deve ser. Ele deve ser aquilo que acontece depois do estouro. O milho da pipoca somos nós: duros, quebra-dentes, impróprios para comer, pelo poder do fogo podemos, repentinamente, nos transformar em outra coisa — voltar a ser crianças! Mas a transformação só acontece pelo poder do fogo.

Milho de pipoca que não passa pelo fogo continua a ser milho de pipoca, para sempre.

Assim acontece com a gente. As grandes transformações acontecem quando passamos pelo fogo. Quem não passa pelo fogo fica do mesmo jeito, a vida inteira. São pessoas de uma mesmice e dureza assombrosa. Só que elas não percebem. Acham que o seu jeito de ser é o melhor jeito de ser.

Mas, de repente, vem o fogo. O fogo é quando a vida nos lança numa situação que nunca imaginamos. Dor. Pode ser fogo de fora: perder um amor, perder um filho, ficar doente, perder um emprego, ficar pobre. Pode ser fogo de dentro. Pânico, medo, ansiedade, depressão — sofrimentos cujas causas ignoramos.Há sempre o recurso aos remédios. Apagar o fogo. Sem fogo o sofrimento diminui. E com isso a possibilidade da grande transformação.

Imagino que a pobre pipoca, fechada dentro da panela, lá dentro ficando cada vez mais quente, pense que sua hora chegou: vai morrer. De dentro de sua casca dura, fechada em si mesma, ela não pode imaginar destino diferente. Não pode imaginar a transformação que está sendo preparada. A pipoca não imagina aquilo de que ela é capaz. Aí, sem aviso prévio, pelo poder do fogo, a grande transformação acontece: PUF!! — e ela aparece como outra coisa, completamente diferente, que ela mesma nunca havia sonhado. É a lagarta rastejante e feia que surge do casulo como borboleta voante.

Na simbologia cristã o milagre do milho de pipoca está representado pela morte e ressurreição de Cristo: a ressurreição é o estouro do milho de pipoca. É preciso deixar de ser de um jeito para ser de outro.

"Morre e transforma-te!" — dizia Goethe.

Em Minas, todo mundo sabe o que é piruá. Falando sobre os piruás com os paulistas, descobri que eles ignoram o que seja. Alguns, inclusive, acharam que era gozação minha, que piruá é palavra inexistente. Cheguei a ser forçado a me valer do Aurélio para confirmar o meu conhecimento da língua. Piruá é o milho de pipoca que se recusa a estourar.

Meu amigo William, extraordinário professor pesquisador da Unicamp, especializou-se em milhos, e desvendou cientificamente o assombro do estouro da pipoca. Com certeza ele tem uma explicação científica para os piruás. Mas, no mundo da poesia, as explicações científicas não valem.

Por exemplo: em Minas "piruá" é o nome que se dá às mulheres que não conseguiram casar. Minha prima, passada dos quarenta, lamentava: "Fiquei piruá!" Mas acho que o poder metafórico dos piruás é maior.

Piruás são aquelas pessoas que, por mais que o fogo esquente, se recusam a mudar. Elas acham que não pode existir coisa mais maravilhosa do que o jeito delas serem.

Ignoram o dito de Jesus: "Quem preservar a sua vida perdê-la-á".A sua presunção e o seu medo são a dura casca do milho que não estoura. O destino delas é triste. Vão ficar duras a vida inteira. Não vão se transformar na flor branca macia. Não vão dar alegria para ninguém. Terminado o estouro alegre da pipoca, no fundo a panela ficam os piruás que não servem para nada. Seu destino é o lixo.

Quanto às pipocas que estouraram, são adultos que voltaram a ser crianças e que sabem que a vida é uma grande brincadeira...


"Nunca imaginei que chegaria um dia em que a pipoca iria me fazer sonhar. Pois foi precisamente isso que aconteceu".

domingo, 3 de agosto de 2014

"Expliquei que somos corpos singulares. Que o mundo que o alegra não me alegra necessariamente. Que a alegria implica composição entre os corpos.
(...)
Se não há gabarito para todos, também não há uma solução existencial para nós, válida para toda nossa trajetória. Porque o que nos alegra hoje, pode não nos alegrar amanhã. E a vida boa deste instante, poderá converter-se em puro tédio logo em seguida. Porque sempre seremos outro em relação ao que já fomos.
(...)
Seu valor depende do encontro. Do afeto. Da alegria ou da tristeza que ensejar. Sempre inédita, irrepetível, virginal.
(...)
Uma centelha de vida imprevisível. Que escapa a qualquer fórmula."


Clóvis De Barros Filho

domingo, 27 de julho de 2014

Rima de um outro verão

Eu sempre esperei descer as escadas e te encontrar ali. O coque desarrumado, o rosto vermelho e mesmo assim eu, deslizando os pés em sapatilha de lona, te encontraria no final dos degraus, pronto para me dar um abraço. Às vezes, quando a música é leve, te imagino me observando assim, de surpresa, pela janelinha da sala de aula. Eu ia me assustar, ia esquecer tudo, mas mesmo assim abriria um enorme sorriso com sua presença. Noutros momentos, você estava no teatro, fazendo parte daquele momento mágico, para compartilhá-lo comigo. Eu desceria do palco toda eufórico, esperando mais uma vez pelo teu afago. Uma coca-cola, um comentário, um beijo e o ano terminaria perfeito. Eu sempre te esperei, esperançosa.

Porque é ali que me estou em essência, que sou mais eu em corpo, alma, mente, espírito e energia. Ali sou completa. A plenitude que eu sempre quis que você conhecesse. A gente é mais do que essas fotos de peitudas e vestidos colados, sabe? A gente é aquilo que a gente expressa, que a gente simplesmente é, quando simplesmente sente. E isso tudo é muito especial e você tinha de fazer parte.

E você já foi muitos. Você já esteve em vários momentos. E você já foi de fato, nunca foi ninguém, nunca esteve lá e já esteve também. Você nunca quis saber, você já me perguntou, você já me viu. Já foi mais velho, mais novo, mais alto, mais baixo, moreno, de olhos claros... E na única vez que eu realmente tive "você" lá, "ele" não estava de fato lá comigo. Estava consigo mesmo. Minha ânsia por dividir o instante de encantamento se petrificou. Não, "você" não me recebeu com carinho, não fez seu comentário, não perguntou o que senti. Limitou-se a queixar-se. Por isso, "você" é "ele".

Já faz 20 anos, completados neste transformador 2014, que você nunca está lá. Te esperei de novo neste final de semana. Tocava a trilha de Amélie Poulain e virei o olhar para a janelinha. Ninguém no vidro. Ninguém para me descobrir. Ninguém nos degraus. A música tomou conta de mim. Teimo em não aceitar que faço isso só por mim. Afinal, você sempre esteve ali.





sexta-feira, 25 de julho de 2014

Mais que um sentido

"A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto."



Em uma aula, na faculdade, lembro-me da professora dizendo que o sexto sentido realmente existia - e não havia nada de sobrenatural nele. Trata-se da propriocepção, a capacidade de perceber-se no mundo. E há ainda aí uma bifurcação: você percebe-se além do mundo ou em relação ao mundo?

Saindo ainda da seara do "eu", há ainda a capacidade de perceber o outro. Sim, nós somos - ou deveríamos ser - capazes de identificar os sinais que o outro nos transmite. De compreender além daquilo que ele verbaliza ou mostra objetivamente. Mas há tanta gente presa dentro das próprias vontades, desejos e do próprio orgulho que nunca sairá do invólucro de si mesmo para perceber o outro.

Ela continua a história. E continua. E continua. São horas de monólogo desinteressante à amiga que se sente à sua frente, prestes a desabafar. Mas que, simpaticamente, continua a ouvir, acenando desinteressadamente quando ela menciona o preço de cada peça. Não consegue se fazer ouvir, não é percebida. Ou ele, que grita sozinho e ininterruptamente, sem perceber que o outro prefere conversar. Esbraveja surda e cegamente, conduzido apenas pelo próprio ego.

Aliás, muitos são guiados apenas pelo próprio ego. "O que EU quero? O que EU pretendo?" Esquecem de que estão interagindo. E como sente-se o outro? E o que eu causo no outro? Sim, você é responsável. Ou deveria ser, caso queira respeito e consideração. Trancado no ego, o indivíduo perde a conexão com seus pares. E temo que estejamos nos importando cada vez menos, em nome do próprio orgulho. Para muita gente, enxergar o outro é difícil, principalmente quando não se considera que há outros referenciais, outros sentimentos. Vejo chaminés humanas tentando transmitir algum recado, tentando ser notadas, tentando ser compreendidas. Emitindo sinais que os gélidos e egocêntricos ao redor nunca verão.



quarta-feira, 9 de julho de 2014

Terapia da bola*

Tristemente, o País do futebol perdeu de 7 x 1. Não foi a seleção canarinho. Todos nós nos sentimos derrotados, fracassados, humilhados.

Em parte, porque somos um país carente de heróis, carente de perspectivas e carente de possibilidades e de futuro. E não há nada de mais "tangível" para um garoto de rua do que poder sonhar, almejar em ser o próximo Neymar; não é simplesmente uma questão de esperança. É uma questão de opção. Provavelmente ele não tenha a oportunidade de estudar; se tiver, provavelmente será discriminado; se não o for, provavelmente não terá a mesma bagagem de um playboy; se tiver, irremediavelmente não terá um tio para indicá-lo; e ainda se tiver, será discriminado por suas origens dentro de um país miscigenado e ainda sem identidade, que insiste em fazer diferença a quem não tiver talento para dizer: "Lá na Disney a coisa toda é muito melhor. Detesto esse país" (Sim, a Disney. Patetas inclusos) - mesmo que seja nesse fim de mundo que faça o seu pé de meia, mesmo que seja mais um explorador deste quintal, mesmo que seja daqui que provenha seu sustento e sua soberba.

O outro lado vem da resistência. Sempre fomos o País do futebol. Deixamos de ser os campeões na Fórmula-1, agora morreu também o futebol. Não somos os melhores (nem razoáveis) na educação, na saúde, na política. Por sorte, éramos conhecidos pelo futebol. Um acaso, um presente do Deus-brasileiro. Nunca nos preparamos para isso. Simplesmente éramos. Porque era simples-fácil-barato ter uma bola nos pés e treinar em qualquer várzea-deserto-rua-quintal-cerrado e aterro sanitário. Do mangue, podia sair qual Fenômeno. Não era preciso barra, piscina ou bicicleta. Democrático e possível. Enquanto gastamos o tempo com a certeza de nosso talento, o patinho feio japonês dedicou-se a estudar a técnica. E a chegar a uma Copa. E todo autoconfiante é pedante e torna-se obsoleto; é fraco demais para ter autocrítica e abrir mão dos próprios paradigmas empederninos.

Não sejamos nós também resistentes. Se nos desapegarmos da pecha de "melhores" talvez possamos um dia voltar ao pódio. Enquanto a arrogância nos cegar, nunca estaremos aptos a olhar para nós mesmos. É preciso vencer a resistência pelo bem de cada um de nós como pessoas, para que possamos fazer a autocrtítica, aprender e superar-se, sem vergonha de mudar. E é preciso admitir que não somos mais os campeões, para que possamos entender, abrir-se para o que é diferente sem ressalvas e sem bloqueios, para restaurar o lugar que já foi nosso. O primeiro passo é negar a negação. E assumir a situação com resiliência. Como brasileiros, como nação e individualmente, em nossas vidas pessoais. Brasileiro tem a mania de insistir e de persistir, mas, muitas vezes, no erro.   


* Sem revisão em 9/7/14.

domingo, 6 de julho de 2014

21 gramas

Dizem que a alma humana pesa 21 gramas; a ciência afirma que a diferença de peso depois da morte deve-se à perda de fluidos e pelo ar expelido pelo cessar da atividade respiratória.

Tenho certeza de quando estou dançando, todo o meu corpo pesa 21 gramas; se estiver no sofá, certamente meus 46 quilos são duas toneladas. Às vezes ela me transborda; às vezes me deixa, como na
tarde de hoje, depois de um "Larga mão de tolice" - e simplesmente me abandona.

É uma mania talvez infeliz, talvez pueril, de enxergar tudo com a alma; de ouvir música em meio ao buzinaço ou de preferir olhar para o céu e para o topo das edificações enquanto o sapato faz apertar o pé. Ou de sentir emudecer a festa para alcançar a expressão e a necessidade de cada um.

Infeliz porque estou sozinha nessa tentativa de sentir o outro, e infantil por acreditar que há uma alma por trás de tudo, que as pessoas dizem muito mais do que suas palavras, por distanciar-me da realidade concreta quando insisto em achar que há poesia em tudo - quando a vida é só pedra sobre pedra.

E de me deixar levar pela onda e sufocar no mar quando, na verdade, muita gente simplesmente não tem alma.



Localização da alma[editar | editar código-fonte]

Ao longo da história, fisiologistas, seguindo a opinião de escolas metafísicas, tentaram estabelecer o local, no corpo humano, onde se localizava a alma:13

segunda-feira, 23 de junho de 2014

Parecendo e aparecendo

"Mas ele parecia tão sincero!", exclamou uma amiga. Parecia. Não necessariamente o era.

Passei a minha infância toda ouvindo que eu deveria uma pessoa bonita "por dentro"; talvez até mais bonita por dentro do que por fora. Que eu deveria me esforçar em ser uma pessoa generosa e agradável, em ter cultura e cultivar relacionamentos; provavelmente esse seria o caminho para me tornar mais valiosa e inclusive irradiar algum tipo de "beleza" - que nunca entendi bem se a física ou se era mesmo um tipo de beleza transcendental. Demorei a compreender que poderia ser fisicamente bonita, vaidosa como sou, e ainda cultivar meus valores.

Mas o que me deixa perplexa e até um pouco indignada é o quanto as pessoas esforçam-se para "parecer"; nunca mais ouvi o discurso do "ser" e da beleza interna. Será que ainda ensinam isso nas escolas, nas famílias? O Facebook é o ícone primordial e o instagram é ditadura máxima do parecer. "Me vejam! Me olhem! Me admirem!" - berram os posts. Nada mais tem valor enquanto vivido, mas quando mostrado apenas. Não vejo graça na foto de petiscos na mesa de bar. "Olhem onde fui! Vejam por onde viajei! Notem o que comi!" Pergunto: e a delícia de chegar de um passeio e contar, com toda aquela euforia e brilho nos olhos, para a mãe, o pai, o namorado, o amigo de todo dia, os colegas de trabalho? A gente conta mesmo para a tela, sem saber se alguém está "ouvindo"?

No instagram, corpos bonitos. Rostos bonitos. Passeios bonitos. O mundo de plástico. As mulheres de silicone, os filtros e os "follow-for-follow". Oi? Eu preciso ter milhares de followers para ter meu valor na rede, na sociedade, na vida? A troca de follows me faz mais importante? E se eu estiver doente? Tudo bem se eu acordar com a cara inchada hoje? Será que a nova geração vai saber que existe o nariz vermelho, cabelos despenteados, a cara lavada ou vão apenas relacionar-se pela tela? Gente, eu quero poder ser normal sem ter medo disso. Ah, e os filtros. Alguém aí sabe que eu tenho sardas?

E se eu não parecer com as rainhas do fitness, da maquiagem e com as missses? E se eu não comer um monte de coisas legais, e se eu não passear tanto assim e se eu quiser ler um livro? Ainda tenho valor na sociedade do parecer, da visibilidade?

Formei-me em 2004 e, uns dois anos antes, lembro-me perfeitamente de uma das aulas da professora Malena Contrera, sobre o voyerismo dos viajantes, que preocupavam-se mais em tirar fotos para "viver" (e não "reviver", notem) a viagem por meio de imagens, prezando mais o pictório do que as sensações. Tenho a impressão de que sou uma solitária nesse mundo, buscando pessoas que me toquem e experiências que me tragam prazer além do visual.

O "ser" ainda tem valor, nesta sociedade? Carrego comigo aquele velho e precioso símbolo: "Ele é tão legal que até ficou bonito". "Me cativou aos poucos". Fragmentos de uma vida que existe, nas sensações, além da estética e das máscaras, tão simples de vestir.

Claro que já me vi rendida algumas vezes. Até que bati de frente com a frustração. Quanta obrigação em "parecer" bela, entoar algum status e quantas prisões. Aprendi as dosá-las; algumas fotos existem só pra mim. Outros momentos existem sem fotos, mas permanecem no registro de uma bela emoção. O que não parece, simplesmente é.


Famosas - e autênticas - de cara lavada


Tô indo dormir. Mesmo. 




P.S.: Texto ainda sem revisão. Sujeito a edição e até mesmo exclusão.




domingo, 15 de junho de 2014

Olha, eu vi o filme. Demorei, mas acho que tive mais coragem de vê-lo hoje. Queria te contar, mas não vou fazer isso. Há tempos que você não quer fazer parte disso; e eu tenho essa ciência. Espero por segunda-feira. Conto para meus colegas. Vão me ouvir. E me explicar e dividir os aspectos que me intrigaram. Não da mesma maneira. Sob o impacto, leio uma resenha. Vou debatendo com as linhas, conversando com as versões. Também estou aceitando que posso ser só, fazendo as pazes com esses momentos. Tagarela, visceral e introspectivamente.

sábado, 14 de junho de 2014

Sou de abraço

Sim, eu sou uma pessoa de abraço. Aquela pausa aconchegante que faz o mundo parecer mais verdadeiro, principalmente num momento agudo. Sinto falta dos abraços e dos toques numa sociedade tão conectada e tão desconectada entre si. Faz falta um abraço.

Aquele que te diz: "Amigo, eu sei o que você está passando. Vai ficar tudo bem." Ele é capaz de te salvar no meio da escuridão. Ou aquele abraço de acolhimento, aquele que não quer ter fim. Aqueles abraços ternos e eternos. Que fazem o tempo parar; o mundo deixar de existir. Tem aquele abraço de empatia, que faz derrubar uma lágrima de tão necessário. Tem abraço carinhoso. Abraço que quer dizer algo mais. Abraço de camarada. Abraço maciiiiio. Abraço de proteção.

E tem abraço sem braço. A gente pode se sentir abraçado num longo sorriso de compreensão. E em palavras simples, frases acolhedoras como um abraço. "Puxa, lembrei do seu teste hoje"- mesmo lá de longe. Num voto de confiança, de encorajamento, quando a gente se sente tão só. Dessas coisas que tornam a vida menos mecanicizadas, menos plastificadas e mais sublimes.

E a gente reluta tanto em dar e receber um carinho. Ninguém quer parecer ridículo, ninguém quer parecer over, ninguém quer parecer inadequado. Quando a gente precisa tanto ser visto, ouvido e sentido, nos encerramos nos estereótipos sociais. Aguardando o momento. Seja lá qual for. Se um dia for. Como se houvesse uma aberração prestes a ser revelada. A gente abre mão de nossa própria natureza, afoga as necessidades, mascara o que a gente tem de mais belo e suave. Vive prendendo o choro. E aguando o bom do amor.

Aos 31, não tenho mais medo das vulnerabilidades. Aprendi o que é ser humana, apesar de ainda me assustar um pouco com a nova fase. Deixei de querer ser a durona. Achava bonito ser a fortaleza, carregar o mundo nas costas. De não querer dar trabalho, de não querer parecer fraca; mas abri mão de uma parte importante de mim. Cansei-me disso. Tenho auto-estima, mas estou pronta a derreter-me. Em abraços. Em uma vida de verdade e não de protocolos. E não de imagens e de bytes.



Fake Plastic Trees




sexta-feira, 6 de junho de 2014

Um lugar para Mary Jane

Sempre foi defensora das minorias. Sempre acreditou na pluralidade, na diversidade. Que ninguém precisava viver a vida da mesma maneira, que existem possibilidades para todos os gostos. Rechaçava os estereótipos, jogava luz em tudo o que fosse diferente, que estivesse à esquerda. Admirava quem tivesse a coragem de sair dos trilhos, sempre bancou o seu discurso inflamado e apaixonado pelas liberdades. De qualquer tipo. Buscava exemplos e mais exemplos, considerava belas as diferenças. Embora prezasse pela polidez, rejeitava o estritamente e politicamente correto; sabia que o correto precisava de correções; que as incorreções consertavam qualquer caminho.

Era filha da criatividade, da ousadia, da entrega. Gostava das ironias, detestava rotinas, adorava o lado b e o avesso. Acreditava nas cores que explodiam sem querer, adorava decifrar os signos escondidos e buscar as mensagens ocultadas. Mas odiava ser revelada.

Sem notar, sabia que teria sempre seu lugar entre a maioria. Que estaria confortavelmente do lado de dentro. Que tudo correria conforme o planejado. Tudo seria rosa e pontual, mesmo que o mundo fosse um arco-íris e um relógio sem bateria.

Um dia deu-se conta de que seguia a manada. Que esforçava-se para seguir a manada. Deprimiu-se quando percebeu que era a ovelha desgarrada. Que era a minoria. Desesperou-se por ver tantas cores de cinzas, depois cegar-se de amarelo. Sofria com a própria contradição.Percebeu-se inexplicavelmente diferente dos outros e daquilo que acreditava que seria. Sentiu-se só. Cartesianamente só. Surpreendentemente só. Depois, revolucionariamente só.

Decidiu renascer. Tornar-se o que sempre quis ser, o que sempre admirou. Precisou de bravura. Andar entre raios e trovões para ver o próprio esplendor. Sentiu a ventania cortar a carne, mas finalmente explodiu em cores. Fossem marrons ou azuis. Tornou-se o que havia de ser. Libertou-se do rebanho. Resgatou a si mesma, perdida dentro das convenções. Mesmo que lhe custasse a solidão. Encontrar-se dentro de si mesma não tinha preço.


Mary Jane (Spiderman)


domingo, 1 de junho de 2014

Sobre a falta e o tempo

Caminhava tentando não sentir o tempo. O tempo, aliás, não era nada quando se tinha a falta. Era ela quem importava e quem tomava quase todo o tempo. Um dia, quando já havia chegado, percebeu que o tempo tinha passado; mesmo que não houvesse sentido, ele havia passado. E não havia mais falta. Não havia mais o tempo da falta. A ampulheta virou. Dois minutos de infusão, apenas. E não dava mais tempo.



domingo, 25 de maio de 2014

Até o fim da linha. Mesmo que não tenha fim.

Era tão simples e fácil abrir essa página e começar. Os textos se fazem no trânsito, nas caminhadas, mas estão meio ausentes. Certamente um momento de reordenação. De busca. De reencontro.

E eu sempre vinha aqui quando tinha algo a dizer a alguém. Algo que eu não conseguia expressar de outra maneira. Nunca tinha imaginado contradição dentro de mim, até que pudesse revolver a alma para entender o que me acontecia. Uma cronista que não conseguia se expressar além das palavras escritas. Que se mantinha rígida, que não deixava escapar um olhar, um sorriso - aquele meu sorriso que tanta gente elogia, que é gostoso de dar, mas que exporia minha alma. O medo de parecer vulnerável demais, "humana" demais. Mesmo que criticasse a frieza e a crueza das pessoas, ergui barreiras, tranquei meu coração em fortaleza.

Nunca foi o medo de amar, sempre fui uma apaixonada. Uma admiradora secreta do amor. Mas havia em mim - ainda há? - o temor paralisante da rejeição. Criar defesas, desculpas, julgamentos não foi difícil. Esconder-me na intransponível carapaça para evitar danos à minha impávida imagem. Enquanto isso, a alma definhava. Amoava em busca de razões. Queria, acreditava, admirava, mas era incapaz de ser, em nome do resguardar-se. Transbordava num seco inverno.

Até que você apareceu. Sem convite, é claro. Belo e desgraçadamente oportuno, o combustível do qual eu precisava naquele momento. E tudo parecia fadado a acontecer da mesma maneira e a terminar do mesmo jeito. E me inconformei com minha própria camisa de força, com minha incapacidade de me deixar ver. O quanto eu sentia, o quanto eu queria. E revoltei-me contra mim, com a possibilidade de encerrar a vida sem de fato ter tentado, até a certeza do fim da linha; tinha horror de alcançá-la.

Decidi lutar contra mim mesma. Um embate contra os conceitos que me encarceravam. Desbravar caminhos na minha essência, dilapidar meu rígido edifício. Agir contra meus instintos em nome de fortalecimento ainda intangível, de um transformação distante. E de um ganho incerto. Os dedos tremeram todas as vezes; sucumbia a mim mesma até que me erguesse em coragem - ou em frustração por ter paralisado. De novo. Por que era tão difícil admitir que eu queria ser amada?

Nenhum esforço evitou que eu fosse feita de boba, que começasse essas linhas entre lágrimas para vê-las secar agora, quando tomo consciência da trajetória. Nem sempre a gente pode, de fato, fazer algo a respeito. Mas há algo de libertador em poder me expressar. Em saber que eu posso fazer isso; que é preferível fazê-lo do carregar todos os nós que os anos e os bloqueios puseram na minha garganta. Mesmo que o final não seja entre flores e chamegos. Também passa.