segunda-feira, 23 de abril de 2012

A companheira


Depois de fazer exercícios, decidiu caminhar de volta para casa. Caminhava lentamente para que o corpo se acalmasse. A mochila preta e vermelha pendia no ombro direito; os cabelos, que já precisavam de aparo, começavam a ficar levemente molhados por causa  da garoa fina. Não tinha pressa de chegar. Tentava afastar a ideia, recusava-lhe a atenção, certo de que se esvairia dentro de alguns instantes. E, conforme previa, se esvaía. Ele dava-se como o vencedor, sem considerar que o ciclo retomava-se a cada oportunidade, entremeava cada pensamento.

Temia ter de reconhecer o questionamento. Temia o momento em que não conseguisse mais domá-lo, temia aquela hora em que o axioma invade, toma conta da conta e se instala na alma, como o mais devastador tsunami. Dali, sabia que não haveria volta. Por isso, evitava dar asas ao raciocínio. Sabia que podia ser custoso. Começou a correr; gostava disso. E gostava da distração que o movimento lhe causava. Uma gota escorria da franja e pingara no rosto, à porta de casa.

Entrou, jogou a mochila no chão e prosseguiu. Viu pelas costas aquela que o esperava; ela virou-se e gritou de felicidade. Ele fez um sorriso. Ela exclamou novamente em voz alta. A dúvida alfinetou com força. Já era tarde, não conseguiria contê-la. Fez outro sorriso e subiu as escadas. Calou-se, na certeza de que amanhã seria um novo dia. Sempre esperava o novo dia, depois da noite que tudo dissolvia. Por dentro, tudo emudeceu.

(continua)

segunda-feira, 9 de abril de 2012

Quanta saudade
E que toda a saudade
Morra

Com todos os planos
Com todo o futuro
Junto ao amor que reprimi
E ao carinho (que possa ter) represado

E tudo o que quis
Se vá em cinzas, num dia nublado
À mais leve
E insignificante brisa
que o vento soprar.


quinta-feira, 5 de abril de 2012

Nada aquém

Aparentemente mais redonda que o normal, subitamente mais iluminada que o usual. Esbranquiçando a negra imensidão ao redor, a imperatriz da noite parecia clarear o céu anoitecido. Estava decidido: tinha de compartilhar a cena.

Na tela, uma sequência de círculos amarelados seguiam-se em fileira. Não sabia mais quem era a Lua. Todos tinham a mesma cor, o mesmo formato, a mesma distância. Não conseguia mais distinguir as ranhuras da superfície - nas noites de verão, com um pouco de sorte, posso vê-las quase como um véu de renda encobrindo o rosto da noiva. Na figura achatada, sumiu-se a residência de São Jorge entre as luminárias das malucas noites paulistanas.

A imagem registrada não tinha o menor sabor. A olho nu, podia deliciar-me com a claridade e com a surpresa daquilo que está sempre ali, suplicando por apreço. Mas não era o que dizia a fotografia; alguns retratossó podem ser vistos com o olhar da alma...

E há quem prefira enxergar luas nas luminárias e aqueles que vêem triviais luminárias na lua. Não gosto das mesmices, não gosto de mais do mesmo, não gosto das repetições. Gosto do que tem forma, gosto do autêntico, gosto das cores. Sou daquelas que enxerga poesia na florzinha perdida no muro, na borboleta que por engano entrou no quarto. Sou daquelas que prefere sentir o invisível a me entregar à crueza dos tiranos. O monocromático e o uniforme me desagradam; eu quero mesmo é ver o explodir de todas as nuances e o transcender de todas as formas...



"Eu sou metal; raio, relâmpago e trovão (...) Não me entrego sem lutar/Tenho ainda coração/Não aprendi a me render/que caia o inimigo então"